Entropia
O que faço aqui? Não sei ao certo. Não sou tecnólogo, nem designer industrial, nem arquiteto, nem bio-designer, nem fashion designer… Sou tudo isso e, simultaneamente, coisa nenhuma. Sou designe. Simplesmente. Multidisciplinar, multi-geográfico — sou do mundo. Não pertenço, claramente, nem “aqui”, nem “ali”. É nessa condição híbrida, que aprendi a acreditar no poder do colectivo, da colaboração e daquilo que podemos chamar “sustentabilidade mútua”: eu sustento-te, tu sustentas-me, todos nos sustentamos, e a este planeta, que nos sustenta.
Há duas décadas “sustentabilidade” cabia numa gaveta ecológica bem apertada: reciclar papel, plantar árvores, desligar as luzes... Hoje, a palavra insuflou. É bandeira política, argumento de marketing, em resumo, está na moda.
Mesmo assim, não a podemos descartar, pelo contrário, como acontece quando as palavras se repetem tanto que perdem o sentido, precisamos de levantar o tapete para ver o que se esconde por baixo.
• Em 2022 produzimos 62 milhões de toneladas de lixo eletrónico. Fui ver online. Diz ela, a internet, que é o equivalente a uma fila contínua de camiões de 40 toneladas a dar a volta ao Equador.
• Se nada mudar, os centros de dados terão consumido perto de 3 % da electricidade global já em 2030. Isto corresponde a mais do que todo o Japão gasta hoje em dia anualmente.
• Só o treino do modelo GPT-4 pode ter libertado 15 000 toneladas de CO₂e, energia suficiente para alimentar 1300 casas durante um ano inteiro. Restou saber que tipo de “casa”.
Como já devem ter lido ou ouvido por aí no scroll, dizer “por favor” e “obrigado” ao ChatGPT desperdiça milhões de dólares em poder de computação, segundo o próprio Sam Altman. Quer isto dizer que a boa educação digital tem, ironicamente, custos ambientais muito reais, e poucos artificiais.
Em resumo, isto tudo está mesmo insustentável! É fácil transformar estes factos em piada... A comédia, tem maior valor se for incómoda. Como um episódio de Black Mirror, que acaba sem aviso, sem a passagem dos habituais créditos finais, e sem anúncio de continuação.
Somos testemunhas da transformação da ficção em facto, que quase passam a significar antes e depois. Humanóides. Carros autónomos. Drones de entrega. Turismo espacial. Guerras remotas via joystick. E as cenas do próximo episódio... Híper-tudo. Hipervelocidade. Hiperconectividade. Hiperneurónios alugados directamente em payper-view, “downloadados” da cloud.
Chamem-lhe Singularidade ou chamem-lhe uma Sexta-feira qualquer: o ponto é que a evolução tecnológica acontece depressa e quase sempre fora do radar público. Até ser demasiado tarde.
Quem aqui se lembra de Gary Kasparov, a levar “uma coça” do Deep Blue, em 1997? Piscámos os olhos e, de repente, o ChatGPT escreve sonetos, corrige código, desenvolve teses de doutoramento e prepara discursos. Este incluído. Qualquer dia, todos nos chamamos “Dr.”.
Estamos nós a potenciar a evolução, ou a alimentar o “emburrecimento” colectivo? Antigamente, taxistas londrinos memorizavam o nome de cada uma das 25,000 ruas antes de terem a licença; com a chegada do GPS, menos hipocampo trabalhado, dizem alguns estudos. Ferramenta de empoderamento ou um atalho para o atrofio cerebral?
Voltemos às boas maneiras digitais. Um estudo somou a pegada de 10 pesquisas por dia no ChatGPT durante um ano: acrescenta 11 kg de CO₂ à tua conta pessoal, o equivalente a 0,16 % das emissões médias anuais de um britânico qualquer. Parece pouco? Multiplica por centenas de milhões de utilizadores. Agora acrescenta os milhares de GPUs sempre ligados, o fabrico dos seus chips, o ar condicionado que arrefece os servidores... O resultado não cabe em hashtags de consciencialização.
Enquanto sonhávamos com carbono, watts e gigabytes... bombardeiros B-2 reabastecem no ar a milhares de quilómetros da base; mísseis guiados por I.A. traçam rotas autónomas, entre outras “fantásticas” inovações tecnológicas que contribuem para que os orçamentos militares inchem mais rápido do que a própria temperatura média global. E ainda... A faixa de Gaza vira ponto de encontro, quase showroom, para show-os de armamentos de última geração; estradas rasgam a Amazónia para convencer líderes num COP qualquer de que o ambiente é importante… depois do estacionamento VIP estar pronto. Sustentável? Apenas retoricamente.
No fim, somos definidos pelo trauma colectivo: pandemias, guerras, desigualdades, sobrecarga de informação, poluição, extinção. Falamos em sustentabilidade ecológica e tecnológica, e desconsideramos a nossa sustentabilidade psicológica. Quando se olha por este prisma, o resto parece cosmética.
Lembremo-nos que aqui, de Maputo a Palma, cada telemóvel carrega a mesma nuvem nos bolsos de oito, em cada dez moçambicanos. A mesma energia que alimenta supercentros de dados no Arizona pode acender uma rede solar que dá luz a uma escola primária em Vilankulo. O lítio que move os carros elétricos na Califórnia, depende do grafite que sai de Cabo Delgado; e os mangais que filtram carbono na baía de Sofala protegem o mesmo clima que arrefece os processadores em Frankfurt. Está tudo interligado, ou hiperligado. Diz-se que “O mundo é como a xima: mexe-se melhor em conjunto.” Globalmente discutimos fábricas de IA; aqui, usamos a mesma inteligência para prever cheias no Licungo e para traduzir conteúdos de saúde para changana, em segundos. Quem diria?
Quando Moçambique participa na conversa planetária sobre sustentabilidade, não vem de mãos vazias: traz plataformas digitais inovadoras, traz óculos inteligentes para pessoas cegas, traz espaços de debate em torno do design, traz também uma Girafa Solar... Projectos sobre os quais terão a oportunidade de se debruçar durante esta conferência... traz também laboratórios de biodesign e comunidades a transformação de resíduos de caju em bioplástico. Entre a escala macro e o micro bairro, cabe-nos provar que grandeza e a proximidade podem dividir o mesmo prato — e alimentar-nos, sem deixar resíduos.
Sustentar significa suportar — e suportar exige cura, descanso, empatia e espaço para falhar. Dizem que a necessidade aguça o engenho. Com poucos recursos e todas as limitações, aqui fazemos acontecer. Vocês, designers, tecnólogos, makers — são especialistas em subverter os limites. São os artesãos do “e se?”. São os guardiões do imaginário, os condutores do hipotético. Para vocês, o que não existe, inventa-se. São vocês, designers, os inventores de outrora.
Convido-vos a fechar os olhos... Imaginem a DEZAINE 2054.
• Servidores são alimentados a geotermia local.
• Cada participante compensa, em tempo real, a pegada da sua curiosidade digital.
• O programa inclui sessões de respiração, não para fazer “mindfulness da moda”, mas para lembrar que a energia também é humana.
• E cada objecto carrega a assinatura de quem o produziu e o destino que o espera depois do evento.
1. Projectar sistemas regenerativos. Não basta reduzir danos; é preciso restaurar.
2. Procurar a transparência radical. Cada linha de código deveria trazer a etiqueta “consumo estimado”, como as calorias num pacote de bolachas.
3. Criar ciclos fechados, de permanência. Hardware desenhado para desmontagem fácil, reparação acessível, reciclagem real.
4. Colaboração multi-espécie. Engenharia inspirada na biomimética: florestas como data centers naturais, micélio como estrutura de packaging.
5. Medir o invisível. Se não quantificarmos o impacto psicológico, continuaremos a tratar burnout como um erro humano em vez de um sintoma sistémico.
Se vos soa utópico, recordem: foi igualmente utópico sonhar, há cinquenta anos, com a partilha global, instantânea, de conhecimento. Estamos sentados em cima do que ontem era considerado impossível. Não vos peço que sejam super-heróis, nem ermitas, ascetas digitais. Peço apenas que, ao saírem desta sala, carreguem consigo três perguntas:
1. “Preciso mesmo disto?” — seja um clique, um servidor ou um bombardeiro teleguiado.
2. “Sustentável, para quem?” — para mim, para minha bolha ou para o ecossistema completo?
3. “Que futuro quero imaginar?” — um reel de 15 segundos ou um que sobreviva aos meus bisnetos?
E o resto é a escolha: entre a hipocrisia, a complacência e a criatividade
transformadora. Nós decidimos, se queremos estar entre “dois dedos de testa” ou a “sete palmos de terra”. Porque aquilo que projectamos hoje—em código, em forma, em palavra — será inevitavelmente o lugar onde todos viveremos, ou não.
Texto de palestra de abertura da DEZAINE Conference 2025
Autor: João Roxo